Clifford D. Simak CITY – Ficção e Reflexão
Dentre os grandes nomes da ficção científica em seu auge, quando os livros eram apenas de papel, figuram Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Philip K. Dick, Ray Bradbury e outros escritores cujas obras até hoje são transformadas em filmes ou servem de inspiração para histórias que conhecemos através do cinema.
Clifford D. Simak foi um dos grandes nomes a figurar na seleta lista de autores, e uma de suas obras-primas, City, conta uma história revolucionária e instigante até os dias de hoje. Publicado em 1952, é supreendente perceber como esse brilhante autor conseguiu misturar ficção, filosofia, espiritualidade, sentimentos humanos, robôs e animais em uma peça singular.
Histórias complexas como essa não serão contadas em um filme, embora muitas ideias originais tenham sido copiadas nas películas que vemos hoje. Para as novas gerações, a ficção científica ficou no passado assim como os filmes clássicos e quase tudo aquilo que exije atenção monotarefa para ser compreendido. Porém, algumas ideias ainda são surpreendentes e inovadoras sob o prisma atual.
Este post se propõe a resumir e debater os pontos-chave dessa fascinante narrativa, mostrando a ficção e gerando uma reflexão que estabelece paralelos com nossa vida real.
Spoiler alert: boa parte da história é relatada abaixo.
A queda das cidades e da sociedade como conhecemos
Ficção
Os anos se passaram, o avião e o helicóptero substituíram o carro, as estradas desapareceram, as plantações não eram mais necessárias devido à hidroponia. Com espaço sobrando no mundo e uma independência nunca antes vivida, o homem abandonou as cidades, estando livre para escolher como queria viver. Alguns compraram lotes baratos no interior, facilmente construindo uma casa e modificando-a para abrigar novas necessidades, alguns foram morar em outros mundos, estabelecendo contato com civilizações alienígenas. Poucos homens ainda continuavam em suas antigas residências, mantendo a tradição familiar viva. Com a ausência de grandes centros a serem disputados, as guerras acabaram.
Reflexão
Clifford estabelece uma realidade que nos faz parar e pensar. As guerras existem, principalmente, por disputas de territórios. A descentralização completa da humanidade acabaria com elas? É mesmo possível que, não havendo a necessidade de se agrupar em grandes centros, com espaço sobrando e transporte rápido e barato, o homem prefira se dispersar? Ideias questionáveis e muito interessantes. O livro estabelece, claramente, a queda das cidades e a mudança do sentimento de uma civilização que, assim como em sua primitividade, tornou-se novamente exploradora e desbravadora.
O homem deixou de ser a espécie dominante
Ficção
O homem alterou os cachorros geneticamente através de cirurgias que os permitiram ler e falar como os humanos. Dessa forma, os cães puderam adquirir conhecimentos e evoluir sua inteligência, incorporando as mudanças nas novas gerações. Os robôs construídos pelo homem ajudavam os cães em diversas tarefas, limitadas pela estrutura corporal desses animais, compensando a ausência de mãos. O tipo de inteligência e raciocínio dos caninos os levava a pensar de forma diferente do homem, abrindo caminho para uma nova evolução. Além disso, através de outra modificação genética, as formigas passaram a ser a espécie dominante na Terra, que passou se se achamar “Ants World” – o mundo das formigas. Cooptando os robôs através de um pequeno “vírus mecânico”, as formigas cresceram sua gigantesca colônia a ponto de ocuparem o espaço físico da Terra.
Reflexão
Esse conceito é muito interessante mesmo, uma vez que Clifford estabelece paralelos na forma como o homem pensa e como um cão supostamente pensaria na mesma situação (mais sobre isso no próximo subtópico). A riqueza de detalhes é grande, o cão inclusive fala de forma diferente. Possui uma objetividade muito grande, mas ao mesmo tempo é capaz de desbravar novas fronteiras. Com inocência, desprendimento e generosidade, os cães chegaram onde o homem nunca chegou antes, levando-nos a pensar como o mundo seria caso outra espécie houvesse desenvolvido a inteligência. Mesmo as formigas representam outro caso muito interessante: sua forma agressiva de crescimento em colônias, aliada ao desenvolvimento de inteligência, as fizeram uma raça insuperável e dominante, ao ponto de inventarem um nanorrobô capaz de, literalmente, entrar no cérebro dos robôs construídos pelo homem e convertê-los em seus escravos. São conceitos muito avançados para uma era na qual onde o computador pessoal e os vírus sequer existiam.
O robô Jenkins é melhor exemplo de lealdade à raça humana. Em uma terra deserta, ele é o último de sua espécie e passa seus dias em uma solidão contemplativa. Dentre as últimas tarefas delegadas por seus amos, estava a de auxiliar a nova raça de cães em seus primeiros passos rumo à evolução. Essa brilhante ilustração é fruto do trabalho do ilustrador nova-iorquino David C Nelson.
Os cães e as outras dimensões
Ficção
Até hoje a ciência discute e admite a existência de outras dimensões. Os seres humanos, em sua religiosidade, acreditam em espíritos. Os cães foram criados geneticamente, sem o conceito de uma religião. Assim, com seu pensamento lógico desconhecendo a fronteira entre ciência e espiritualidade, eles conseguiram compreender e acessar outras dimensões. O que o homem chama de fantasmas ou espíritos, para os cães são habitantes de outros planos que eles aprenderam a acessar. Dessa forma, enquanto o homem construía foguetes para explorar fisicamente outros mundos, os cães tinham a opção de simplesmente se transportar para dimensões paralelas e povoá-las. Aliás, com o passar dos anos, os cães perderam contato com a bagagem de ciência do ser humano, o que faz sentido uma vez sua raça havia nascido em um mundo tecnológico. Em verdade, os cães sequer tinham conhecimento a respeito das viagens interestelares e outras tecnologias humanas.
Reflexão
O mais fantástico dessa discussão toda é a queda das barreiras entre ciência e espiritualidade. Realmente, é preciso uma mente livre de pré-conceitos para que o assunto possa ser visto sobre um novo prisma. No livro, a sensibilidade dos cães é a chave para isso. Várias vezes é citado o exemplo de cães que “latem no meio da noite, quando não há ninguém ao redor e não vemos rastro de nenhum animal“. O autor insinua que isso é uma espiritualidade canina, um dom que os cães possuem de ver outras coisas e que o ser humano não consegue. Portanto, uma mente livre de dogmas e dotada de tal espiritualidade conseguiu compreender e explorar o conceito de outros planos entre o céu e a Terra, algo que o homem, no fundo, acredita dentro de uma condição esotérica. Aposto que, quando o seu cachorro latir à noite, você passará a olhá-lo de outra forma a partir de agora!
A filosofia marciana
Ficção
Havia vida inteligente em Marte, uma raça que coexistia pacificamente com os humanos. Um grande filósofo marciano lançou as bases para uma nova filosofia que poderia fazer a humanidade avançar 100.000 anos em apenas duas gerações. Pressão social e necessidade de aprovação eram fatores que faziam o homem matar e morrer – seguir cultos, agrupar-se em facções e cometer atrocidades em massa. A filosofia marciana se disporia a resolver todos esses dilemas, propondo uma nova linha de pensamento para a raça humana. Entretanto, com a morte do filósofo, somente uma mente que não conhecia abismos ou lógica, uma mente aliviada de 4.000 anos de pensamentos humanos, seria capaz de continuar e concluir o estudo. E assim surge a figura de um mutante, o mesmo ser inteligentíssimo que possibilitou o desenvolvimento da raça das formigas, que se interessou pelo estudo inacabado e se propôs a terminá-lo.
Reflexão
Talvez a parte mais profunda do livro é a proposição de uma nova base filosófica – um pensamento completamente diferente de tudo que o homem tem adotado desde a sua mais primitiva evolução. Talvez algumas pessoas pensem que isso é ir longe demais, porém é muito interessante refletir sobre o fato de que, dada a nossa bagagem cultural e social, é muito difícil (se não impossível) pensar de forma realmente independente em uma questão tão profunda. E o mero fato de questionarmos isso já é válido. Esse é mais um exemplo do quão brilhante eram as mentes dos autores de ficção científica como Clifford D. Simak – o que seria material para um livro todo e poderia gerar um amplo debate a respeito, nada mais é do que um apêndice em sua história. De fato, cada um desses tópicos já daria material suficiente para um filme completo, e City é um livro bastante curto.
A exploração de Júpiter – inspiração para Avatar?
Ficção
Júpiter é um planeta com pressões atmosféricas tão intensas que o fundo do oceano mais profundo da Terra parece um vácuo em comparação. Nenhum ser vivo terrestre e nem mesmo o mais denso metal fabricado pelo homem poderiam existir em Júpiter. Entretanto, lá viviam os Lopers, complexos seres que não poderiam ser retirados para estudo pelo motivo oposto – não sobreviveriam fora da densa atmosfera. E assim os marcianos fizeram um longo e demorado trabalho de estudo no local, desenvolvendo uma forma para o homem explorar o planeta – no melhor estilo AVATAR, os seres humanos eram teletransportados para um corpo de Loper e saíam para explorar o planeta. O problema: eles não voltavam.
Um intenso debate surgiu sobre o que estaria errado – algum defeito ou incompatibilidade na geração do corpo artificial? O homem estaria ficando insano ao assumir a nova forma? E assim, um dos personagens do livro resolve arriscar mais uma conversão. Segue sua vida em Júpiter, porém, misteriosamente retorna alguns anos depois, contando toda a experiência que passou (continua no próximo subtópico).
Reflexão
Ler um livro de 1952 e ser deparado com uma narração como essa é surpreendente, para não dizer chocante. Quantas pessoas devem ter rotulado Clifford D. Simak como um maluco de primeira? Mas hoje, ante o sucesso de filmes como Avatar, seria essa ficção um pouco mais plausível? E, afinal, Avatar não seria assim tão original ao utilizar um conceito já explorado mais de meio século antes?
Fato é que essa proposição engenhosa representa a parte mais empolgante de todo o livro – e dá margem a uma conclusão cuja mera possibilidade parece aterradora e nos faz pensar muito. Veja a seguir.
A deserção para Júpiter e o fim da raça humana
Ficção
Viver um um corpo de Loper mostrou-se libertador para a raça humana. Todos sabemos que não utilizamos nem mesmo 10% do nosso cérebro, enquanto um Loper utilizaria toda a capacidade. Sendo assim, novos sentidos afloravam no novo corpo assumido por um ser humano. Muito mais do que olfato ou visão, o sentidos representavam músicas e vibrações de todos os elementos daquele novo mundo de cores intensas e condições atmosféricas agressivas. Telepatia era o meio de comunicação entre a raça, e a possibilidade de usar na plenitude o poder cerebral gerava uma inteligência e capacidade de compreensão sem precedentes. Um poder enebriante, melhor do que qualquer droga e nunca antes vivido por nenhum homem. O mero pensamento de voltar à condição humana seria inaceitável. E por isso ninguém havia voltado para contar a história, até esse dia.
Fowler, o personagem em questão, resolveu voltar à condição terrena alguns anos depois por uma questão de dever moral. E ele resolveu contar para a humanidade o que presenciou. Muito mais do que uma vida intensa, o que Fowler ofereceu à humandade foi o Paraíso em vida. Como consequência, nos anos que seguiram à revelação, com poucas exceções, a humanidade desertou em massa para Júpiter.
Reflexão
É bem verdade que não usamos nosso cérebro em sua plenitude – a ciência já demonstrou isso. Alguns seres humanos parecem possuir dons especiais, tais como a mediunidade – para aqueles em que acreditam. Um cérebro poderoso e 100% funcional poderia trazer outros sentidos ao homem? Órgãos sensoriais mais evoluídos poderiam nos fazer enxergar mais cores e perceber outras sensações, tais como pressão, vibração, novos sons e outras que sequer poderíamos descrever?
Porém, o mais chocante disso tudo é pensar que o ser humano aceitaria trocar sua condição de humanidade para viver como outra raça. Eu pessoalmente não acredito que, mesmo dada a condição descrita pelo livro, o ser humano seria capaz de rumar em massa para o desconhecido. Porém, esse choque está alinhado com a parcial descrença do autor em uma humanidade capaz de produzir a guerra e diversos outros sofrimentos.
A filosofia marciana explicada
Ficção
Finalmente, a filosofia marciana é compreendida e explicada. Ela provê o indivíduo com a capacidade de perceber o ponto de vista do outro. Ela não vai necessariamente fazer a pessoa concordar com o ponto de vista, mas sim reconhecê-lo e entender como o outro se sente a respeito. Com a nova filosofia, o indivíduo precisa aceitar a validade do conhecimento e das opiniões de outro homem, incluindo o sentimento por trás delas. Enfim, o real significado por trás das palavras. A verdadeira compreensão dessa filosofia teria o poder de mudar a humanidade.
Reflexão
Enquanto no livro a assimilação da ideia pela raça humana ajudou a “destruir” a humanidade como a conhecemos, dispersando o ser humano e contribuindo ainda mais para o efeito “Júpiter”, na prática esse pensamento, de fortes raízes espíritas, pode ser a chave para um verdadeiro respeito entre os homens.
O que importa não é o quão chocante essa mudança filosófica possa, eventualmente, parecer. Ela é apenas um exemplo. O mais interessante é considerar o fato de que poderíamos alterar nossas crenças pessoais e filosofias de milênios de história para um novo entendimento que poderia fazer a raça humana evoluir como nunca antes. Evolução conduzida pela espiritualidade ou pela “humanidade” e não pela tecnologia, como muitos apostariam.
Bastante filosofia para ser analisada – não é algo que esperaríamos extrair de um livro de 200 páginas de ficção científica, escrito há mais de meio século.
CONCLUSÃO FINAL
A primeira conclusão a que cheguei ao analisar todas essas histórias e ideias é que um escritor que viveu no século passado pode ter muito mais a acrescentar à humanidade, em um único livro, do que um diretor de cinema em muitos filmes.
A segunda conclusão é de que não podemos subestimar e tampouco negligenciar o passado, pois ele representa a base do que somos hoje, e ainda pode trazer muitas reflexões importantes. Afinal, onde encontrar esse tipo de pensamento capaz de abrir nossos horizontes, na literatura ou nas artes contemporâneas?
A conclusão final é que muito do que vivemos está baseado em nossas profundas crenças, costumes e forma de pensar. É impossível se libertar de todas as amarras, mas qualquer esforço nesse sentido é válido. Afinal, o homem não descobriu nem vai descobrir as respostas para todos os questionamentos.
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